Capitalismo e heranza

Acredita-se geralmente que a capacidade de transferir propriedade para os descendentes é um elemento essencial do capitalismo
Acredita-se geralmente que a capacidade de transferir propriedade para os descendentes é um elemento essencial do capitalismo, sem o qual os incentivos dos capitalistas murcharão e o sistema perderá o seu dinamismo. Nada poderia estar mais longe da verdade. Na verdade, a aquisição de propriedade através da herança contraria a justificação burguesa para a propriedade capitalista.

Esta justificação repousa na afirmação de que os capitalistas têm alguma qualidade especial que é rara, cujo emprego torna próspera a nação e pela qual eles devem ser premiados – mas não há unanimidade entre porta-vozes burgueses sobre o que é exactamente esta qualidade especial. Esta qualidade não pode consistir no seu supervisionamento do processo de produção, pois tal supervisão é tipicamente exercida por pessoal assalariado o qual na melhor das hipóteses é constituído por trabalhadores superiores; eles obtêm um salário e não lucros (a menos que possuam alguma propriedade na forma de acções). Foi o reconhecimento deste facto que levou John Kenneth Galbraith a falar de firmas serem dirigidas não pelos capitalistas mas pelo que ele chamou de "tecnoestrutura".

Nem tão pouco o que Keynes chamou "espíritos animais" constitui esta qualidade especial. A força dos "espíritos animais" pode determinar, como Keynes acreditava, o montante do investimento, mas não pode explicar a própria existência do rendimento dos capitalista e portanto da propriedade.

Mesmo as outras justificações para o rendimento e a propriedade dos capitalistas carecem de credibilidade. Uma delas refere-se aos capitalistas como sendo "tomadores de riscos". Contudo, os riscos de facto não são tomados pelos capitalistas mas por aqueles cujos fundos lhes são confiados através da intermediação de bancos para o empreendimento de projectos. Se um investimento de risco colapso então é deste último os fundos que desaparecem. Nestes tempos, naturalmente, os governos em países capitalistas vêm em resgate de bancos e outras instituições financeiras, os quais equivalem a socializar riscos. Mas isso destrói ainda mais decisivamente a noção de capitalistas tendo a qualidade especial de serem "tomadores de risco".

Da mesma forma a ideia de que capitalistas possuem propriedade e ganham um rendimento sobre ela porque eles se encarregam de "poupança", isto é, abstêm-se de consumo e com isso fazem um sacrifício pelo qual devem ser premiados, nestes tempos seria geralmente ridicularizada. Deixando de lado argumentos filosóficos acerca do significado de "sacrifício", há uma refutação muito simples e óbvia deste ponto de vista, a qual é que é o investimento que determina poupanças e não vice-versa. As poupanças que são geradas quando o investimento é empreendido provêm de uma maior capacidade de utilização quando existe capacidade não utilizada – e através da inflação que extorque à força os salários reais e, consequentemente, o consumo dos trabalhadores quando a capacidade é plenamente utilizada. O investimento regido pela escolha voluntária entre o consumo e a poupança por um conjunto de indivíduos – e aqueles que optam pela poupança a necessitarem de uma recompensa pelo seu sacrifício – simplesmente não é o modo como funciona o capitalismo.

Finalmente, há a visão de que capitalistas são "empreendedores" que introduzem "inovações" e com isso transmitem uma dinâmica à economia. Como este empreendedorismo não é uma qualidade que se encontra em abundância na sociedade, aqueles que a possuem devem ser premiados. O problema com esta visão é que a propriedade capitalista existe e os lucros são ganhos mesmo quando não há inovações, isto é, mesmo na reprodução simples.

Mas meu objectivo aqui não é criticar teorias burguesas sobre o porquê da existência da propriedade capitalista – e de uma categoria de rendimentos ganhos sobre esta propriedade chamada lucro. A questão é que mesmo se aceitarmos que qualquer destas explicações para a propriedade capitalista isto não justifica porque uma pessoa que não exiba esta qualidade especial, que dá direito à propriedade a um capitalista de acordo com esta explicação, deveria também ter propriedade, ou seja, por que razão a propriedade deveria ser herdada. De facto, aceitar que a propriedade deva ser herdada, por qualquer pessoa que seja descendente de um capitalista, mesmo que este descendente não tenha demonstrado qualquer qualidade especial, é ir contra a explicação de que a propriedade é uma recompensa por alguma qualidade especial. A aquisição de propriedade através da herança é portanto uma negação de qualquer justificação burguesa para a propriedade capitalista.

Mas então o que fazemos do argumento do "incentivo", ou seja, do argumento de que esta qualidade especial que os capitalistas possuem, pela qual a sociedade os recompensa, simplesmente não estaria disponível se eles não tivessem a certeza de passar a sua propriedade aos seus filhos? Este argumento equivale, no entanto, a uma justificação não da herança mas sim de chantagem, de a sociedade capitalista lhes permitir passar propriedade aos filhos como um preço pelo emprego do seu "talento especial". Para além dos seus duvidosos fundamentos éticos, este argumento nem sequer é logicamente defensável: não há absolutamente nenhuma razão, por exemplo, para que as inovações desapareçam numa sociedade onde não há herança. Se uma pessoa deixa de ser inovadora porque não há herança, então alguma outra mostrará capacidade de inovação apesar de não haver herança. Assim, não há nenhum argumento defensável a favor da herança numa sociedade capitalista mesmo pela lógica burguesa.

Esta é a razão porque a maior parte dos países capitalistas, mesmo na actual fase neoliberal de subserviência aos capitalistas, continua a ter impostos elevados sobre a herança. O Japão por exemplo tem um imposto sobre a herança de 50 por cento e mesmo os Estados Unidos têm um imposto de 40 por cento. A maior parte dos países europeus também têm impostos em torno dos 40 por cento. Sem dúvida poder haver evasão extrema, mas o princípio da tributação sobre a herança é amplamente aceite.

Na Índia infelizmente não há nem qualquer imposto sobre a riqueza nem qualquer imposto sobre a herança que mereça esse nome, embora a desigualdade de riqueza esteja a aumentar rapidamente. E, além disso, não há sequer um debate público sobre a questão. Isto pode ser porque, apesar da promessa consagrada na constituição, mesmo a igualdade de oportunidades aparece à maioria das pessoas como um sonho irrealizável – e elas estão satisfeitas exigindo apenas algum alívio das suas condições de vida miseráveis. Mas democracia exige igualdade de oportunidades (que nunca poderá ser realizada sob o capitalismo) pede, no mínimo, não só uma superação da desigualdade de riqueza como também uma abolição em princípio da riqueza através da herança.

O que isto pode alcançar pode ser ilustrado por alguns números. Em 2019 estimou-se que a riqueza privada total do país era de US$12,6 milhões de milhões ou aproximadamente 945 milhões de milhões de rupias à taxa de câmbio actual, dos quais a fatia dos 1% do topo era de 42,5%, o que equivale a cerca de 400 milhões de milhões de rupias. Mesmo um imposto sobre a riqueza de 2% sobre esta soma irá arrecadar 8 milhões de milhões. Um imposto sobre a riqueza de 2% é o que Elizabeth Warren havia sugerido como taxa mínima nos Estados Unidos sobre uma riqueza de US$50 milhões ou mais, quando era candidata presidencial (Bernie Sanders viria a propor depois um imposto progressivo sobre a riqueza com taxas que variavam entre 1 e 8%).

Além disso, se tivermos um imposto por herança mesmo de um terço, então, assumindo que cerca de 5% da riqueza total dos 1% de topo da população é legada todos os anos, obtemos 6,67 milhões de milhões. Só estes dois impostos, cobrados apenas sobre os 1% de topo da população, seriam suficientes para arrecadar 14,67 milhões de milhões, ou cerca de 7% do PIB actual (retirando do quadro o impacto da pandemia).

A instituição de um estado providência (welfare state) na Índia que assegure cinco direitos económicos fundamentais – o direito à alimentação a preços acessíveis, o direito ao emprego (ou salário integral se não for fornecido emprego), o direito a cuidados de saúde gratuitos publicamente disponíveis, o direito à educação gratuita publicamente disponível até ao nível universitário e o direito a uma pensão de velhice e a prestações de invalidez adequadas – estima-se custar mais 10% do PIB para além das despesas já incorridas sob estas rubricas. Quando o governo gasta 10% extras do PIB, isto aumenta o próprio PIB através do "multiplicador", do qual cerca de 15% regressa ao governo (tanto ao governo central como aos governos estaduais) como impostos; os novos impostos necessários para gastar mais 10% do PIB são, portanto, estimados em 7% do PIB, que é exactamente o que os dois impostos irão render.

Daqui decorre que apenas dois impostos cobrados sobre os 1% superiores da população serão suficientes para financiar a instituição de um Estado providência na Índia. Que ninguém diga que o país não tem os recursos para erradicar o estado miserável de privação em que vive a maior parte da nossa população.

O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2020/1108_pd/capitalism-and-inheritance
Tradução de JF.