Quatro anos de Biden

Há um novo presidente nos EUA, a economia capitalista e o estado mais poderosos do mundo. O mandato de quatro anos começa hoje, quando Donald Trump foge para a sua propriedade e campo de golfe na Florida, depois de dizer que o seu "movimento está apenas a começar".

Qual é a situação dos Estados Unidos no momento em que Biden assume o controlo? A pandemia da COVID-19 tem provocado enormes danos à vida e aos meios de subsistência de milhões de americanos. O seu impacto tem sido muito pior do que poderia ter sido, por várias razões. Primeiro, o governo dos EUA, tal como outros governos, nada fez para se preparar para a pandemia da COVID-19. Como já explicado em posts anteriores, os governos haviam sido avisados de que agentes patogénicos perigosos para a vida humana para os quais não havia imunidade estavam a tornar-se mais prevalecentes, causando uma onda de epidemias antes do COVID-19. Mas a maioria dos governos não gastou na prevenção (investigação em vacinas) ou na proteção (recursos sanitários robustos e sistemas de teste e rastreio). Pelo contrário, os governos cortaram nas despesas de saúde, privatizaram e entregaram a terceiros os cuidados de saúde e, no caso dos EUA, montaram um sistema de seguro privado de saúde que deixou uma considerável minoria de americanos sem qualquer proteção e os restantes a pagar prémios enormes pela cobertura dos cuidados de saúde.

Nos EUA e noutros países, como o Reino Unido, a Suécia e o Brasil, os governos recusaram-se a reconhecer a natureza mortífera do vírus e a tomar medidas para salvar vidas. Para estes governos, o mais importante foi a manutenção das empresas, particularmente das grandes. Esta atitude levou a confinamentos tardios e a medidas de isolamento social, depois a confinamentos "leves" que não suprimiram a propagação do vírus e a relaxamentos demasiado precoces, provocando um ressurgimento da pandemia.

Assim, enquanto Biden faz o seu juramento na cerimónia de tomada de posse, os americanos ainda se veem confrontados com níveis quase recorde de casos de COVID e de mortes. Ao mesmo tempo, a atividade económica e a mobilidade das pessoas permanecem muito abaixo dos níveis pré-pandémicos. De acordo com o último relatório de mobilidade do Google, a atividade económica dos EUA ainda se encontra cerca de 20-25% abaixo dos níveis registados no mesmo período do ano passado.

Na verdade, o custo económico da pandemia em 2020 foi equivalente a 80% da produção real do PIB dos EUA em 2020, se considerarmos o PIB perdido, as mortes prematuras, os problemas de saúde física e mental a longo prazo e a saúde mental.
Assim, o governo cessante (tal como muitos outros) não conseguiu salvar vidas e também não conseguiu salvar os meios de subsistência. Isto é especialmente verdade para os que são mais mal pagos, quase sempre impossibilitados de trabalhar em casa, forçados a trabalhar em condições perigosas ou a serem dispensados, ou seja, especialmente os negros e outras minorias étnicas, as mulheres e os jovens.
Ao todo, a economia dos EUA encolheu cerca de 4 a 5% em 2020. É a maior contração desde o início dos anos 30 – ou seja, há 90 anos! O emprego caiu em mais de 25 milhões, havendo hoje milhões com subsídios de emergência, subsídios de desemprego ou abandonados. Grande número de empresas americanas, especialmente no setor de serviços, mas não só, fecharam e não voltarão a abrir depois de a economia recuperar (quando a vacinação abranger suficiente número de americanos).

Todos os indícios sugerem que tem havido um prejuízo indelével para a economia no emprego, no investimento e nos rendimentos. A maioria dos estudos sugere que a economia dos EUA em termos de PIB não voltará aos níveis de 2019 antes do final de 2022, na melhor das hipóteses, e certamente não voltará aos níveis que o PIB teria atingido se não tivesse havido a recessão da pandemia.

Portanto, não haverá a recuperação em forma de V que se esperava – na verdade, de todas as economias mundiais mais importantes, só a China está a conseguir isso. Em vez disso, há aquilo a que chamei uma recuperação de "raiz quadrada inversa" em que o resultado desce, mas depois não recupera até atingir a mesma trajetória do crescimento económico que existia anteriormente. Esse resultado perdeu-se para sempre, como as previsões para os EUA da Oxford Economics mostram abaixo.

E quanto às ações de política económica adotadas durante a recessão da pandemia, pela administração de Trump e aquelas que estão planeadas por Biden durante 2021 e para além disso? Não impulsionarão a economia dos EUA para "negócios como habitualmente?".
No ano passado, houve a maior injeção de crédito da História no sistema monetário, através das compras do governo ao Federal Bank Reserve e das dívidas empresariais e empréstimos a empresas. O balanço do FED quase duplicou num ano, chegando a quase 40% do PIB dos EUA e prevê-se que ainda aumente mais este ano. Salvou as empresas da falência? Sim, até certo ponto, mas em especial as grandes indústrias de viagens, de automóveis e de combustíveis fósseis, enquanto muitas pequenas empresas estão a ir à falência.

Com taxas de juro mais ou menos a zero, e o FED a injetar mais crédito nos cofres dos bancos e das empresas, será que esta abundância ajudará a manter a economia dos EUA a um ritmo rápido em 2021? Tudo indica o contrário. A história daquilo a que se chama "flexibilização quantitativa" (em que o importante é a quantidade do dinheiro a crédito injetado e não a redução do custo desse dinheiro em juros) provou que essa flexibilização não consegue recuperar os setores produtivos da economia capitalista. Um estudo empírico chegou à conclusão de que: " resultados e inflação, em contraste com alguns estudos anteriores, mostram um impacto insignificante, apresentando provas das limitações dos programas do banco central " e " a razão para o estímulo económico negligenciável do QE é que o dinheiro injetado financiou mais o crescimento do preço dos ativos financeiros do que o consumo e os investimentos ". balatti17.pdf (free.fr)

Na verdade, o que aconteceu a todas estas injeções de crédito é que têm sido usadas pelos bancos e pelas grandes empresas para especularem nos mercados de ações e de dívidas, ao invés de servirem para pagar salários, preservar postos de trabalho ou criar investimento. Depois do pânico inicial da pandemia em março, o mercado de ações dos EUA entrou numa orgia sem paralelo.

Está agora numa alta sem precedente e, quanto aos ganhos e ativos produtivos, está em níveis extremos. Com mais apoio futuro do FED, os mercados financeiros podem manter-se durante mais tempo. Assim, as políticas monetárias limitaram-se a manter as empresas em funcionamento, inflacionando a riqueza dos muitos ricos.
A ineficácia da política monetária para restaurar a economia dos EUA significa que os economistas convencionais são hoje "todos keynesianos". O FMI, o Banco Mundial, a OCDE e, claro, a futura administração Biden elogiam os méritos do aumento de despesas governamentais enquanto este gere os défices do orçamento de "emergência". Janet Yellen, a antiga presidente do Federal Reserve no tempo de Obama, vai ser a secretária do Tesouro de Biden. Yellen deixou claro no seu testemunho no Congresso dos EUA de que é membro: "Temos de atuar em grande" porque, embora "os economistas nem sempre estejam de acordo, penso que hoje há um consenso: sem uma atuação em grande, corremos agora o risco duma recessão mais prolongada, mais dolorosa – e dum prejuízo indelével a longo prazo da economia posteriormente".
Assim, temos o novo pacote de estímulo fiscal de Biden para 2021. Os principais elementos do plano de estímulo de Biden incluem pagamentos a indivíduos até 1400 dólares cada; mais ajuda a governos estaduais e locais; a extensão de subsídios de emergência de desemprego de 400 dólares por semana; fundos para ajudar a reabertura de escolas e universidades; financiamento das vacinações, testes e rastreios; mais crédito fiscal infantil; aumento do ordenado mínimo.

À primeira vista, parece uma coisa em grande, para usar as palavras de Yellen, olhando para a injeção orçamental total de mais de 25% do PIB. Contudo, não corresponde à realidade. Primeiro, muitas destas medidas podem não ser aprovadas no Congresso, apesar da estreita maioria de que os Democratas dispõem hoje. Além disso, até este nível de apoio orçamental é curto perante aquilo que é necessário para impedir a miséria de 25 milhões de americanos ou para impedir que os governos locais sejam forçados a cortes de postos de trabalho e despesas para "equilibrar as contas". Além do mais, o aumento do salário mínimo para 15 dólares por hora significará que os que ganharem esse salário mínimo ficarão muito longe do salário médio. E Biden não pretende implementar este aumento de imediato, mas prolongá-lo ao longo do tempo.
Biden também planeia um pacote pós-pandemia a que chama "Criar um Plano de Recuperação Melhor" que engloba um estímulo de investimento de dois mil milhões de dólares, virado sobretudo para iniciativas ecológicas, com compras do governo Buy America, maior investimento em Investigação e Desenvolvimento e em infraestruturas. Mais uma vez, isso é repartido ao longo do mandato de quatro anos e representa apenas o máximo de 1% de aumento do PIB no investimento do governo, se implementado na totalidade.

E o busílis é este. Em média, o investimento do governo em relação ao PIB na maioria das grandes economias capitalistas é de cerca de 3% do PIB, enquanto o investimento capitalista é, em média, de cerca de 20% do PIB. Assim, a revitalização do investimento, do crescimento e dos empregos, numa economia capitalista, acaba por depender do investimento capitalista e não do investimento do governo. Claro, o plano de investimento de Biden terá repercussões no setor capitalista, mas de pouca monta. Muitos estudos recentes mostram que o "efeito multiplicador" das despesas do governo sobre o crescimento real do PIB não passa de 1% e, em média, metade disso .

Assim, o plano de Biden poderá aumentar, na melhor das hipóteses, 1 ponto percentual ao crescimento dos EUA, mais provavelmente metade disso. Dado que a taxa de crescimento médio da economia dos EUA tem sido pouco mais de 2%, um ano antes da COVID e ainda menos per capita, o plano de investimento de Biden não vai servir de muito para conseguir um PIB sustentável e mais alto e um crescimento de emprego durante os próximos quatro anos.

O problema é que o setor capitalista da economia dos EUA está muito relutante em investir principalmente porque a rentabilidade desse investimento é muito baixa. Com efeito, a taxa de lucro do capital nos EUA está tão baixa como após 1945.

Claro, todos ouvimos falar dos enormes lucros feitos pela Amazon, a Google, a Netflix e quejandas e pelos grandes bancos durante a recessão da pandemia de 2020, mas os lucros das cinco empresas (Facebook, Amazon, Apple, Netflix e Google) são a exceção à regra . Os lucros empresariais totais (depois de deduzidos os subsídios governamentais) caíram uns 30%. Segundo a Bloomberg, nos EUA, quase 200 grandes empresas juntaram-se às fileiras das chamadas empresas "zumbis" desde o início da pandemia. Representam agora 20% das 3000 maiores empresas cotadas na Bolsa, com uma dívida de 1,36 mil milhões de dólares. Isso significa que 527 dessas 3000 empresas não ganharam o suficiente para satisfazerem o pagamento de juros! Portanto, mantém-se um risco significativo de crise de crédito e de colapso financeiro, talvez em 2021, quando acabar a generosidade do FED.
Depois, há a discussão sobre a dimensão da dívida pública e da inflação. A dívida do setor público dos EUA disparou em flecha durante a pandemia, para mais de 110% do PIB dos EUA.
Atualmente o consenso é que 1) os governos não têm alternativa senão gastar mais e ultrapassar os seus níveis de dívida, ou não haverá recuperação após a pandemia; e 2) não há problema se os níveis de dívida aumentarem porque o custo do pagamento dessas dívidas (juros) é muito baixo e quando o PIB recuperar, as receitas do governo vão aumentar, as despesas de emergência vão estabilizar, e o custo da dívida será controlável. A economia pode crescer para além do peso da dívida como aconteceu após a II Guerra Mundial.
Não há dúvidas de que os juros líquidos da dívida governamental são muito baixos historicamente, apenas ligeiramente acima de 1% do PIB por ano, em comparação com uma taxa de crescimento do PIB de 2 a 3% no próximo ano. Mas alguns estudos convencionais são menos otimistas. O Peterson Institute defende que aqueles " que acreditam que as taxas quase certamente não subirão estão muito confiantes na sua opinião. As forças que têm contribuído para taxas mais baixas são universalmente difíceis de prever, e, conforme assinalado atrás, até alterações modestas nas taxas podem provocar movimentos de boas dimensões nas taxas líquidas enquanto quota da economia no futuro ". ( Fiscal resiliency in a deeply uncertain world: The role of semiautonomous discretion | PIIE ).

Como se mostra no quadro acima, uma simples subida de 0,5 ponto percentual nos custos médios das taxas da dívida governamental elevaria os custos das taxas acima da taxa de crescimento provável. Além do mais, se o prazo de reembolso médio das obrigações do governo não for cumprido (e não está a ser cumprido), o governo rapidamente entra no terreno do aumento da dívida a fim de pagar o custo e o reembolso da dívida existente ou, em alternativa, tem de fazer cortes significativos nas despesas governamentais, como a assistência à saúde, segurança social ou, mais provavelmente, nos chamados gastos discricionários, como educação, serviços públicos, etc. Pode ser que o debate sobre se a austeridade é necessária ou não seja puramente académico. Mas a procissão ainda vai no adro.

Claro, os proponentes da Moderna Teoria Monetária têm rejeitado fortemente a sugestão de que o governo dos EUA finalmente precisará acabar com os défices orçamentais e encarar a dívida crescente. Defendem que Biden pode e deve gerir défices orçamentais permanentes até que o pleno emprego seja alcançado. Não há necessidade de financiar estes défices anuais pela emissão de mais obrigações governamentais. Como o governo controla a unidade de conta, o dólar, que todos têm de usar, o Federal Reserve pode "imprimir" dólares para financiar os défices à medida que o Tesouro exigir. O pleno emprego e o crescimento seguir-se-ão.

Analisei em pormenor noutros artigos as falhas na argumentação da Moderna Teoria Monetária , mas a principal preocupação é que as despesas governamentais, embora financiadas, podem não atingir o aumento do investimento necessário e do emprego. Isso porque a Moderna Teoria Monetária não retira a tomada de decisões sobre investimentos e empregos das mãos do setor capitalista. O grosso do investimento e do emprego mantém-se sob o controlo do capitalismo, e não do estado. Como argumentei atrás, isso depende da rentabilidade esperada do capital.

Vou repetir as palavras de Michael Pettis, um sólido economista keynesiano: "o resultado é este: se o governo puder gastar fundos adicionais de formas que façam crescer o PIB mais depressa do que a dívida, os políticos não precisam de se preocupar com uma inflação esquiva ou com o acumular da dívida. Mas se esse dinheiro não for usado produtivamente, o oposto é que é verdade ". Isso porque " criar ou pedir dinheiro emprestado não aumenta a riqueza de um país a não ser que isso resulte, direta ou indiretamente, num aumento do investimento produtivo… Se as empresas dos EUA estiverem relutantes em investir, não porque o custo do capital seja alto mas porque a rentabilidade esperada é baixa, dificilmente reagirão… investindo mais ".

Numa recessão importante, as empresas vão à falência, o desemprego aumenta e o investimento em meios de produção suspende-se. Os lucros totais caem, mas estão criadas as condições para um aumento na taxa de lucro, à medida que os custos diminuem e os fortes devoram os fracos. Joseph Schumpeter da escola austríaca de economistas chamava a isto "destruição criativa", seguindo Marx que defendia que as recessões acabavam por criar o ambiente para o aumento da rentabilidade e da expansão – obtemos assim o ciclo de expansão, recessão e expansão.

A depressão da pandemia de 2020 é comparável à da década de 1930, portanto acabará provavelmente por proporcionar uma expansão da rentabilidade. Mas foi necessária uma guerra mundial para acabar com a Grande Depressão da década de 1930. Se o FED continuar a facilitar o crédito às empresas para apoiar os "zombies" à custa do investimento produtivo, a economia dos EUA, com Biden, voltará ao crescimento baixo, ao investimento baixo, à economia de crescimento de salários baixos dos últimos dez anos desde a Grande Recessão.

E se a desilusão quanto às políticas de Biden aumentar, isso pode estabelecer a base política para o regresso de alguma coisa como o "trumpismo" que, segundo Donald, "está apenas a começar".


O original encontra-se em thenextrecession.wordpress.com/2021/01/20/bidens-four-years/ .
Tradução de Margarida Ferreira.