Prabhat Patnaik

A conjuntura leninista

O pressuposto teórico básico subjacente à Revolução de Outubro era que devido às rivalidades inter-imperialistas desencadeara-se uma época de guerras que forçava os trabalhadores dos diferentes países imperialistas a matarem-se uns aos outros nas trincheiras, que o capitalismo havia alcançado um ponto crítico. Tornara-se historicamente “moribundo”, anunciando uma era de revoluções sociais, as quais seriam […]

21 Novembro, 2017 Listaxe de artigos do colaborador 74 Leituras
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O pressuposto teórico básico subjacente à Revolução de Outubro era que devido às rivalidades inter-imperialistas desencadeara-se uma época de guerras que forçava os trabalhadores dos diferentes países imperialistas a matarem-se uns aos outros nas trincheiras, que o capitalismo havia alcançado um ponto crítico. Tornara-se historicamente “moribundo”, anunciando uma era de revoluções sociais, as quais seriam confinadas não apenas aos países capitalistas avançados mas abrangeria também os países oprimidos cujos povos haviam sido arrastados a estas guerras como “carne de canhão”. O que podia evitar tais revoluções era só a vacilação de algumas secções da liderança da classe trabalhadora (ex. os responsáveis sindicais pertencentes à “aristocracia do trabalho”.) Isto exigia que os revolucionários rompessem com eles e “avançassem sozinhos” se necessário.

A lógica para constituir a Terceira Internacional Comunista repousava nesta crença. No programa da Internacional, o conceito que aparecia com destaque era a “Crise Geral do Capitalismo”, cuja referência era precisamente esta conjuntura. Muito embora “avançar sozinhos” levasse a um estreitamento da base social da revolução, a alternativa era abrir mão de todo da possibilidade de revolução, o que equivalia a uma traição à causa histórica da classe trabalhadora.

Dito de modo diferente, a crença era que mesmo se certos segmentos, não apenas da liderança mas mesmo da classe trabalhadora sob sua influência, a princípio não aderissem à revolução ou permanecessem hostis a ela, eles não ficariam assim permanentemente; adeririam finalmente ao lado da revolução. Ou, para utilizar a distinção entre [o aspecto] “histórico” e “prático” que Lenine empregou ao criticar Lukacs sobre a questão do parlamentarismo, mesmo se a obsolescência prática do capitalismo não fosse evidente para algumas secções da classe trabalhadora naquele momento, sua obsolescência histórica finalmente seria compreendida. Nesse ínterim, quaisquer dificuldades surgidas do possível estreitamento da base revolucionária devido à política de “avançar sozinhos” podia ser ultrapassado pelo facto de que a revolução estaria a acontecer em vários países uns após os outros, países que poderiam apoiar-se uns aos outros e portanto impedir a conversão do países onde a revolução havia ocorrido num “espaço fechado”.

Este ponto acerca da percepção da conjuntura histórica é extremamente importante. Argumenta-se frequentemente que a Revolução de Outubro, apesar do seu enorme âmbito, alcance e significância, representava no entanto a captura do poder por uma minoria determinada e o autoritarismo do regime pós revolução e o colapso derradeiro da União Soviética que se seguiu era um resultado inevitável disto. Dizendo simplesmente isto contudo ignora o facto de que a tomada do poder não foi apenas alguma espécie de blanquismo oportunista mas era baseada na crença firme de que a história estava do lado dos revolucionários. Quando Yuli Martov abandonou o Congresso dos Sovietes, a observação do seu antigo mentor Leon Trotsky, “Vai para o caixote do lixo da história”, exprime de forma concisa esta convicção da parte dos bolcheviques.

Não foram apenas comentadores da direita que viram a revolução como uma mera conspiração (por vezes como uma conspiração judia), ou os escritores liberais que viram a revolução como uma tomada de poder por um grupo determinado em nome e a favor dos trabalhadores mas não como um levantamento das próprias massas de trabalhadores, mas igualmente vários marxistas que podem ser acusados de falhar neste ponto particular. Muitos marxistas viram por exemplo na decisão bolchevique de desmantelar os sovietes não apenas um ponto de viragem na história da revolução, um ponto em que começou a errar, mas uma usurpação de poder por um partido centralizado da classe trabalhadora. Tal visão ignora o facto de que aqueles que executaram a chamada “usurpação” fizeram-no na base de um entendimento de que a história estava do seu lado, isto é, que a sua acção era válida e que esta validade seria confirmada pela marcha da história.

Por outras palavras, a chamada “usurpação”, não importa quais as suas consequências posteriores, surge a uma luz muito diferente quando reconhecemos que foi informada não por algum “interesse egoísta” do Partido, muito menos qualquer “interesse egoísta” individual, mas por um certo entendimento do que era historicamente necessário numa conjuntura particular, nomeadamente que uma ditadura partidária era a necessidade do momento para preservar a própria ditadura do proletariado. Este entendimento pode ter sido errado, mas ele não é sinónimo da ideia de que uma ditadura do partido era necessariamente a forma na qual a ditadura do proletariado tinha sempre de ser exercida. A mencionada percepção veio a prevalecer posteriormente, mas ela não estava na base da decisão de desmantelar os sovietes, de qualquer modo pode-se criticar aquela decisão.

Curiosamente, a visão de que a necessidade de preservar a revolução deveria prevalecer sobre normas democráticas maioritárias se alguma vez se verificasse um conflito entre as duas, foi proposta não pelo próprio Lenine ou pelos bolcheviques sob a sua liderança, mas por Plekhanov, muitas vezes mencionado como “o pai do marxismo russo”. A posição de Plekhanov sobre esta questão, segundo Krupskaia, teve uma profunda influência sobre Lenine e inclinou a sua decisão naquela conjuntura crucial. A questão que estou a levantar resumidamente é que não devemos reduzir as complexidades da história a um mero desejo de engrandecimento do partido ou pessoal.

A crença de que a história estava do seu lado, de que a tomada do poder em nome do proletariado, e a sua manutenção, mesmo através de uma ditadura do Partido, era justificada, foi sustentada pela percepção da iminência de revoluções alhures. Lenine foi claro em que a Revolução Bolchevique sobreviveria se se verificassem revoluções alhures que a sustentassem. As esperança inicialmente repousaram numa Revolução Alemã, mas depois de tais esperanças serem desmentidas Lenine mudou a sua atenção para o Leste e via a China e a Índia como os novos sítios promissores para a revolução, observando mesmo que a Rússia, a China e a Índia em conjunto representavam a maioria da humanidade, de modo que revoluções nestes países inclinariam decisivamente o equilíbrio de forças numa direcção favorável ao socialismo.

Esta crença na iminência de revoluções alhures decorria da percepção da conjuntura já mencionada, uma conjuntura que era capturada sob o conceito de uma “crise geral do capitalismo”. Toda a posição leninista, sobre a necessidade da tomada do poder pelos trabalhadores sempre que possível, mesmo se alguns segmentos dos trabalhadores não aderissem ao lado da revolução, e sobre a manutenção do poder por estes trabalhadores sob a liderança do partido revolucionário mesmo quando isto fosse contra normas democráticas maioritárias, derivava da crença de que havia chegado uma conjuntura revolucionária mundial, a qual implicaria o desligamento do capitalismo de uma parte substancial do globo. Doravante referir-me-ia a esta conjuntura como a conjuntura leninista.

O facto de que a conjuntura leninista realmente existiu no tempo de Lenine era amplamente reconhecido naquela época, mesmo por muitos que se opunham ao marxismo. John Maynard Keynes foi um deles e o seu [livro] Consequências económicas da paz foi amplamente citado por Lenine no Segundo Congresso do Comintern. Naturalmente, para alguém como Keynes, o problema era que algo tinha de ser feito para salvar o capitalismo naquela conjuntura, mas isto também significava reconhecer a conjuntura por aquilo que ela era. Mas a conjuntura leninista continuou a caracterizar o mundo por um longo período, mesmo após a morte de Lenine. Na verdade, pode-se dizer que todo o período de 1914 a 1945 foi marcado pela conjuntura leninista. A primeira guerra mundial, a Revolução Bolchevique, as tentativas revolucionárias em grandes partes da Europa no rescaldo da primeira guerra mundial, a Grande Depressão da década de 1930 a qual era em si própria uma manifestação da desunião entre potências capitalistas, a ascensão do fascismo no rastro da Depressão e como uma sequela das falhadas Revoluções Alemãs, e o desencadeamento da segunda guerra mundial, foram todas manifestações da prevalência da conjuntura leninista, uma conjuntura em que a rivalidade entre potências capitalistas havia trazido a humanidade ao limiar de uma revolução mundial porque oferecia, nas palavras de Rosa Luxemburgo, uma opção entre o socialismo e a barbárie.

Entretanto, com o fim da segunda guerra mundial a conjuntura leninista na minha opinião chegou a um fim. Dizer isto pode parecer estranho, uma vez que a Revolução Chinesa foi completada apenas em 1949 e a Revolução Vietnamita mesmo posteriormente; e nesse ínterim houve a Revolução Cubana. Além disso, o próprio fim da segunda guerra mundial viu a propagação do socialismo a áreas amplas da Europa do Leste. De facto, a visão de Lenine de uma grande parte do mundo a optar por não fazer parte da órbita do capitalismo fora realizada só após a guerra. Portanto, dizer que o fim da guerra, a qual representava a validação da visão leninista, também assinalava o fim da conjuntura leninista pode parecer estranho.

Mas a conjuntura leninista terminou precisamente no seu apogeu. As Revoluções Chinesa e Vietnamita foram meras realizações retardadas de eventos cujas raízes são anteriores. Na verdade, o retardamento desta última pode-se considerar ser a causa de muito desnecessário e trágico banho de sangue. Mas o factor básico que contribuiu para a formação de uma conjuntura pós leninista após a guerra foi modelado como um resultado da própria guerra. Consistiu num duplo desenvolvimento: a emergência da hegemonia clara de uma potência capitalista, os Estados Unidos, ao invés da rivalidade inter-imperialista que existia anteriormente, e portanto um bloqueamento da rivalidade inter-imperialista; e a propensão do capitalismo a fazer concessões devido ao seu enfraquecimento com a guerra.

Três destas concessões foram importantes. Uma foi a descolonização, ou o fim de impérios coloniais formais. As velhas potências capitalistas estavam demasiado fracas para manter seus impérios coloniais formais face a lutas de libertação nacional que varriam o terceiro mundo. E a nova potência capitalista, os EUA, embora tivesse ambições coloniais e possessões coloniais anteriores, como a Filipinas, estava interessado em formas de dominação mais actualizadas do que o domínio colonial directo. (Mesmo no Vietname retirou o manto colonial dos franceses para impedir uma revolução comunista, ao invés de impor qualquer colonialismo por si próprio, ab ovo).

Naturalmente, o fim do colonialismo formal não implicou ipso facto a libertação de países do terceiro mundo da dominação imperialista: pretendia-se que o controle sobre as suas economias e recursos naturais fosse retido pelas grandes potências através de outros meios apesar da independência formal e de uma luta intensa ter sido travada por eles, habitualmente com a ajuda da União Soviética, para recuperar tal controle. Mas a descolonização formal, não importa quão enviesada, implicou a inauguração de uma era inteiramente nova.

A segunda concessão dizia respeito à classe trabalhadora em economias metropolitanas. Em termos políticos a classe trabalhadora saíra muito mais poderosa da guerra. Por toda a Europa do Leste, no rastro da marcha triunfal do Exército Vermelho, surgiram regimes que transcenderam o capitalismo e procuraram representar o poder dos trabalhadores. Em França e na Itália emergiram Partidos Comunistas como poderosas forças políticas. Em outros lugares da Europa a social-democracia ascendeu, com Winston Churchill, o primeiro-ministro britânico do tempo da guerra, perdendo a eleição do pós guerra para o Partido Trabalhista. Por toda a parte no mundo capitalista a classe trabalhadora fizera imensos sacrifícios durante a guerra e não queria voltar para trás, para os dias da Depressão e sofrimento anteriores à guerra. Também nos Estados Unidos, um retorno ao desemprego do pré guerra era simplesmente inaceitável, especialmente desde que o New Deal de Franklin D. Roosevelt dera um vestígio do que era possível. Portanto, por toda a parte no mundo capitalista avançado a intervenção do Estado na administração da procura, a base teórica que fora preparada pelo keynesianismo, acabou por ser uma política aceitável.

Na Europa, medidas de Estado Previdência foram promulgadas, as quais promoveram a despesa pública; muito embora tais despesas fossem financiadas parcialmente por impostos lançados sobre os próprios trabalhadores, elas tinham o efeito de promover a procura agregada e o emprego. Nos EUA, foi implementado o chamado “militarismo keynesiano” – o qual implicava emprego alto sustentado pela despesa militar. Em suma, emprego alto e mesmo pleno, de uma ordem nunca testemunhada ao longo da história do capitalismo durante um período de tempo prolongado, tornou-se a norma.

O alto nível de procura por sua vez provocou alto investimento e crescimento. Portanto, uma alta taxa de crescimento da produtividade do trabalho, a qual, dada a prevalência do emprego quase pleno que fortaleceu muito o poder de negociação dos trabalhadores, também resultou numa alta taxa de crescimento dos salários reais. Este período, o qual perdurou até o princípio dos anos 70 e assistiu elevado crescimento da produção, emprego elevado e crescimento elevado dos salários reais, acabou por ser etiquetado como a “Era Dourada do Capitalismo”. Ela foi, em contraste com os anos anteriores à guerra, um período de ascendência da classe trabalhadora dentro dos países capitalistas, uma ascendência que se devia muito ao legado da própria Revolução de Outubro mas que também significava uma mudança na conjuntura que dera suporte e fora assumida por aquela Revolução.

A terceira mudança implicava a introdução de democracia política com base no sufrágio universal de adultos. Na Grã-Bretanha a mulheres obtiveram o direito de voto só em 1928 (e mesmo então algumas restrições residuais ao sufrágio continuaram a permanecer até o período do pós guerra). Em França, um dos sítios originais da revolução burguesa, o sufrágio universal de adultos foi introduzido só em 1945. Em suma, o capitalismo do pós guerra assistiu a algo que nem Marx nem Lenine haviam testemunhado.

Isto foi ainda mais longe ao contrário da observação de Lenine na sua resposta a Lukacs de que o parlamentarismo se tornara historicamente obsoleto sob o capitalismo, embora não praticamente obsoleto. O parlamentarismo, verificou-se, não se tornara obsoleto, o que é um sintoma da mudança de conjuntura que havia ocorrido.

Sem dúvida, a chegada da democracia aos países capitalistas avançados foi muito depois de os Estados burgueses se terem consolidado nestes países, de modo que a democracia baseada no sufrágio universal de adultos não apresentasse por si uma ameaça ao Estado burguês. E as ligações estreitas do Estado burguês com o capital monopolista não foram de modo algum minadas pelas estruturas democráticas. Além disso, o capitalismo desenvolveu todo um novo conjunto de mecanismos para assegurar que estas ligações continuavam. Estruturas democráticas no entanto tornavam novos caminhos de luta disponíveis para a classe trabalhadora. Elas ampliaram o âmbito para a intervenção política da classe trabalhadora e abriram vias para minar o Estado burguês que antes não existiam. A propagação subsequente de estruturas democráticas a países do terceiro mundo representou um novo avanço de grande significado histórico.

Estas mudanças, embora progressivas fortaleciam as classes oprimidas, também significavam que fora rompido o impasse que havia marcado a conjuntura leninista. A frase de Rosa Luxemburgo citada anteriormente para descrever este impasse, nomeadamente que apresentava à espécie humana uma drástica opção entre o socialismo e a barbárie, já não era mais apropriada na era do pós guerra como havia sido no período 1914-1945. Novas possibilidades e novas opções emergiam mesmo dentro do capitalismo, não porque o capitalismo desejasse que emergissem mas porque na nova situação ele tinha de aceitar a sua emergência. Ele tinha, em suma, de se reestruturar.

Mas enquanto o capitalismo reestruturou-se a si próprio e com isso produziu uma mudança na conjuntura leninista, os países socialistas não se empenharam em qualquer reestruturação comparável. O fim da conjuntura leninista significava portanto que a propagação do campo socialista, ao invés de levar a União Soviética a escapar do “espaço fechado” a que fora empurrada anteriormente, levou meramente à criação de uma multiplicidade de “espaços fechados”.

A não reestruturação de países socialistas significava em particular que as duas principais características inter-relacionadas e mutuamente sustentadas do sistema soviético, uma “economia de comando” e uma “ditadura de um Partido”, continuavam como antes. A “Economia de Comando” tinha sem dúvida muito ao seu crédito. Em particular, como destacou até Janos Kornai, um dos seus críticos, ela desenvolveu um “sistema constrangido de recursos”, em oposição ao “sistema constrangido pela procura” que o capitalismo tipicamente constitui. Ao invés do desemprego que aflige o capitalismo de modo perene, as economias socialistas foram caracterizadas pela escassez de trabalho, o que era um fenómeno sem precedentes em tempos modernos e que, ao trazer mulheres em grandes números para a força de trabalho, também tinha um impacto profundo sobre relações de género.

A Economia de Comando tem sido criticada pela sua ineficiência no uso de recursos e pela sua incapacidade de inovar. Mas se a comparação for com economias capitalistas, como é habitual, então estas críticas não procedem. Ao contrário das economias capitalistas que são constantemente dominadas por capacidade não utilizada e desemprego, as economias socialistas, como foi correctamente notado, experimentavam plena utilização de recurso. Portanto, qualquer conversa acerca de ineficiência deve referir-se à orientação errada dos recursos. Quando nos recordamos da enorme má orientação de recursos sob o capitalismo, com utilizações improdutivas como publicidade e esforços de venda, é claro que qualquer que fosse a má orientação ocorrida sob o socialismo não podia ter sido tão grande que compensasse os benefícios combinados tanto a plena utilização como da ausência de esforços de venda. Quanto a inovações, a União Soviética não só tinha feitos notáveis a seu crédito como em princípio sequer está claro porque uma economia de comando deveria ficar para trás em matéria de inovações. Uma vez que grande parte dos avanços subjacentes às inovações, mesmo no capitalismo, ocorrem sob a égide do Estado ou na melhor das hipóteses através da investigação empreendida por Corporações Multinacionais, não há razão para que uma economia de comando deva ser pior na introdução de inovações: ela pode de facto “encomendar” inovações em prol da economia como um todo tal como multinacionais encomendam inovações em prol de si mesmas. O único tipo de inovações que pode ser desencorajado numa economia de comando socialista é aquela que é promovida por indivíduos no capitalismo na expectativa de grandes fortunas pessoais e isto porque fortunas pessoais não existem sob o socialismo. Isto contudo pressupõe que pessoas trabalhem só quando motivadas pelo ganho pessoal. Não há uma razão necessária do porque isto deveria ser assim e o interesse de uma economia socialista é romper com isto. O sistema socialista que existiu certamente não fez isso e isso, em oposição a qualquer falta de inventividade em si, é a crítica real que se pode apontar contra ele.

Portanto, o problema real com a economia de comando jaz alhures, nomeadamente que ela não proporciona um motivo alternativo para o trabalho e a disciplina de trabalho que é o que o socialismo deve fazer. Sob o feudalismo o trabalho é extraído por coerção directa, através do chicote do senhor. Sob o capitalismo é extraído através da manutenção de um exército de reserva do trabalho, o qual actua como força coerciva. Sob o socialismo, onde deve haver pleno emprego, o motivo para o trabalho deve ser o desejo de trabalhar para o colectivo como meio de auto-realização individual a qual é uma condição para ultrapassar a alienação. (E quando isto acontece, a inventividade individual deixa de estar ligada a quaisquer noções de ganho pessoal ou “prémio” mas verifica-se como um assunto natural, razão pela qual uma economia socialista deveria ser potencialmente muito mais inovadora do que uma capitalista). A economia de comando que surgiu nos países socialistas proporcionou pleno emprego a todos os trabalhadores mas a motivação para o trabalho não era a coerção de ser lançado para o exército de trabalho de reserva e sim a coerção política da punição estatal. E esta coerção estava ligada ao ambiente geral de autoritarismo associado à ditadura de um Partido. A economia de comando e a ditadura monopartidária sustentavam-se uma à outra e, apesar de trazerem enormes benefícios para os trabalhadores, introduziram uma nova forma de alienação. Ela tornou-se uma ditadura para o proletariado, isto é, para o benefício do proletariado e exercida sobre o proletariado, mas não uma ditadura do proletariado.

Dentre as suas muitas consequências estava uma atrofia da vida intelectual. É devido a esta atrofia que comunistas continuavam com o entendimento de que a conjuntura leninista persistia, que a crise geral do capitalismo sob a qual a revolução mundial avançaria na maneira antecipada por Lenine, ainda tinha forças. Esta falta de reconhecimento de uma mudança na conjuntura não importava a princípio porque a União Soviética, e com ela o movimento comunista de todo o mundo, desfrutavam de imenso prestígio. No mundo capitalista avançado seus sacrifícios e lutas para derrotar o fascismo evocavam ampla admiração e gratidão entre os povos, e no terceiro mundo o seu papel na luta anti-feudal e anti-colonial e na sustentação do regime dirigida que surgiu após a descolonização, teve o mesmo efeito. Mas esta atracção desvaneceu-se ao longo do tempo, como tinha de acontecer, com o surgimento de uma nova geração para a qual estas memórias pouco significavam. E isto quando o problema do socialismo existente se tornava mais claro.

Este problema, para recapitular, jaz no facto de que enquanto o capitalismo se reestruturou, os regimes socialistas que surgiram continuaram a ser caracterizados pelas ditaduras de um partido as quais progressivamente despolitizaram a classe trabalhadora e introduziram uma nova espécie de alienação, diferente da alienação imanente ao capitalismo, mas no entanto uma alienação. O regime da ditadura de um partido que fora uma contingência na sequência da revolução tornou-se a prática normal do socialismo e foi mesmo teorizada como tal. E este fenómeno persistiu mesmo depois de a própria conjuntura leninista ter acabado e com quaisquer esperanças de que uma mudança na situação surgiria do simples avanço da história. Portanto, uma vez que a memória das lutas e dos sacrifícios dos comunistas nas lutas anti-fascistas e anti-coloniais se desvaneceu, a persistência de regimes e partidos comunistas não reestruturados tornou-se simplesmente insustentável. O colapso rápido do comunismo com que nos deparamos hoje em grandes partes do mundo resulta do facto de que a sua teoria e consequentemente sua prática e estrutura não se ajustaram à conjuntura pós leninista. O movimento sobreviveu só onde, como na Índia, foi suficientemente inovativo para encarar e ajustar-se à nova situação num certo grau.

Esta falta de ajustamento, na verdade a falta de reconhecimento da mudança na conjuntura, como já sugerido, resulta parcialmente da própria estrutura política. O que pode ter sido apropriado no contexto primitivo tornou-se um obstáculo para a mudança e isto verificou-se também no âmago do pensamento. O lado forte do movimento socialista revolucionário havia sido o seu brilho intelectual. Num tempo em que o pensamento burguês fora marcado por uma apologética grosseira e pelo conformismo descuidado, para não mencionar seu mal-estar mais profundo de uma concepção reificada do mundo, o movimento revolucionário havia produzido pensadores do calibre de Karl Kautsky, Lenine, Luxemburgo, Lunacharsky, Bukharin, Gramsci, Lukacs e muitos outros. O movimento revolucionário fora o berço da genialidade no âmago da actividade intelectual e artística. Mas a extinção de toda dissidência e a imposição de uma uniformidade, e do conformismo, através de uma combinação da ditadura de um Partido e do centralismo democrático como a base do funcionamento do Partido, a qual na prática degenera ao longo do tempo em mero centralismo, destrói a criatividade, originalidade e mesmo o desejo de encarar a verdade.

Um mundo fingido, sustentado pelo reforço mútuo no interior da liderança de uma tendência para não se desviar de ideias “aceitáveis”, induz a substituição do universo real. E isto não significa apenas que as bases não ousem exprimir pontos de vista diferentes daqueles que a liderança afirma, mas dentro da própria liderança são expressos publicamente pontos de vista que estão em desacordo mesmo com os que são afirmados em privado pelos próprios líderes. O facto que depois se tornou aparente, nomeadamente que nem uma única pessoa em toda a liderança do Partido Comunista da União Soviética acreditava no Comunismo, razão pela qual quase todos eles posteriormente tornaram-se os novos líderes não-comunistas nas várias repúblicas em que a União Soviética acabou fragmentada, só confirma isso. A recusa “oficial” em reconhecer que o mundo havia entrado numa conjuntura pós leninista foi um resultado desta atrofia no âmbito do pensamento.

Esta atrofia do pensamento é irónica uma vez que a concepção teórica do “Partido Leninista” é aquela de uma vanguarda auto-correctora consistente de revolucionários profissionais que estão armados com a teoria e aplicam-na a um entendimento da situação concreta na sua totalidade para elaborar o caminho correcto para executar o avanço da revolução. Por que então acabámos com a consequência oposta de uma atrofia do pensamento e uma desconexão palpável entre o pensamento e o mundo, de um “encerramento” do universo conceptual oficial dentro do qual o mundo real não interfere?

Há dois problemas com esta concepção do “Partido Leninista” a qual, como mostra a sua intervenção na discussão sindical, não é do próprio Lenine. Primeiro, é uma concepção idealista que vê o grupo de revolucionários profissionais que constituem o Partido inteiramente em termos não-humanos: eles não têm gostos e desgostos pessoais, nem manobras tácticas ou ajustamentos dentro do Partido e nem elementos pessoais que afectem seus julgamentos; eles são marcados só por um puro compromisso com a correcta análise dialéctica da situação concreta. É uma concepção idealista porque mesmo Georg Lukacs teve de fazer um compromisso teórico para obter um “bilhete de entrada”, como ele coloca, para o combate ao fascismo. Um arranjo político envolvendo uma ditadura de um Partido que se conceptualiza de um modo inteiramente irreal destaca-o do mundo real. Um “encerramento” que crescentemente torna o Partido nas suas posições “oficiais” isolado do mundo (embora membros do Partido na vida real possam estar conscientes deste facto), em oposição a compreender correctamente o mundo, o qual era a sua lógica original, assume o comando. E quando a ilusão rompe a atrofia teórica que a antecedera, faz com que o Partido ou seus diferentes fragmentos caiam como presa fácil da hegemonia da ideologia burguesa.

Precisamente por causa desta possibilidade é importante impedir um “encerramento” do Partido através da institucionalização da sua responsabilidade para com a classe trabalhadora. Um meio óbvio de fazer isso é que a classe trabalhadora tenha a possibilidade de escolher entre partidos, isto é, através de um sistema multipartidário. Pode-se perguntar: como pode uma rejeição do Partido pela classe trabalhadora ser teoricamente justificada quando esta classe não está tão teoricamente avançada quanto o corpo de revolucionários profissionais que constituem o Partido? Um compromisso ingénuo com a “democracia”, poder-se-ia argumentar, justificaria uma tal rejeição, mas há qualquer justificação teórica para isto no contexto da luta de classe? A justificação, acredito, repousa no facto de que a classe trabalhadora pode não ser tão teoricamente avançada quanto o corpo de revolucionários profissionais que constituem o Partido, no entanto tem um “instinto de classe” (para usar uma frase de Lenine). O instinto de classe permite à classe trabalhadora ser um árbitro durante a luta de classe e, portanto, dá-lhe meio de acção (agency) mesmo acima do Partido.

O arranjo político de uma sociedade socialista, em suma, tem de ser diferente do que emergiu historicamente em sociedades pós revolucionárias. Ao mesmo tempo, entretanto, a mudança na conjuntura de que tenho falado tem uma implicação importante. Uma enorme discussão tem-se verificado dentro da intelligentsia de esquerda sobre como impedir a revolução de atrofiar, como impedir a classe trabalhadora de se tornar despolitizada após a revolução e de como cumprir a promessa da revolução para desencadear criatividade ao invés de acorrentá-la. Intelectuais do Partido Comunista geralmente não participaram explicitamente nesta discussão uma vez que a atrofia de revoluções não foi oficialmente reconhecida pelos Partidos Comunistas excepto nos casos em que relações inter-Partido azedaram. Marxistas independentes como Jean Paul Sartre ou Paul Sweezy foram mais activos em tais discussões. A relação entre o Partido, a classe e o Estado que se deve obter numa situação pós-revolucionária tem sido o foco de tal discussão.

Mas toda a discussão tem ocorrido dentro de uma perspectiva em que foi considerado como garantido que revoluções futuras ocorrerão em grande parte tais como aquelas do passado (embora diferentes na sua base de classe e modus operandi entre o primeiro e o terceiro mundos). Mas se for reconhecido que esta mesma conjuntura mudou e portanto a trajectória que uma transformação revolucionária deve agora seguir tem de ser diferente do que ocorreu anteriormente, então o próprio problema primitivo pode já não ser relevante. Uma ditadura do partido, por exemplo, mesmo como um meio de proteger a revolução, pode não ser necessária. Por outras palavras, o próprio problema é provável que seja diferente uma vez que a trajectória da transformação revolucionária na nova conjuntura será diferente por vias que discutiremos em palestras subsequentes.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/

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